segunda-feira, 19 de abril de 2010

Descanse em paz

Jamais me esquecerei do fatídico 15 de abril de 2010, dia em que atropelei um homem e o vi morrer diante de meus olhos.

A quinta-feira começou como qualquer outra. Saí de casa um pouco atrasada. O Dé me deixou no escritório e ficou com o carro. Mais tarde, deixou-o no estacionamento próximo ao meu trabalho, para que eu pudesse ir à faculdade.

A aula de Comunicação Empresarial terminou cedo, por volta das 22h20. Saí da faculdade com meu colega de turma, Samuel, para quem dou carona todas as noites, já que ele mora perto da minha casa. 

Seguia pela BR-116, sentido PR-SP. Pelo retrovisor, percebi um veículo se aproximando rapidamente, então fui para a pista da direita e ali permaneci, reduzindo a velocidade, uma vez que a saída para o meu bairro já estava próxima.

Num trecho muito escuro, sem nenhum poste de iluminação, visualizei já bem perto um vulto cruzando a estrada, da esquerda para a direita, muito lentamente. Para ser mais exata, ele estava praticamente parado. Não dava pra saber se ele seguiria adiante, em direção à faixa pela qual eu passaria em instantes, ou se permaneceria onde estava, esperando que meu veículo passasse.

Tudo aconteceu em questão de segundos. Embora eu já estivesse diminuindo a velocidade, era impossível parar totalmente o carro numa distância tão curta. Conforme me aproximava, vi que a pessoa continuava avançando lentamente. Afundei o pé no freio o máximo que pude, joguei o carro para a direita, para fora da pista, e buzinei, na esperança de que o homem saísse do transe em que parecia se encontrar.

Infelizmente, a única coisa que eu não podia prever foi o que aconteceu: no exato momento em que eu passaria ao lado do homem, sem causar-lhe qualquer dano, ele correu em direção ao carro, atingindo a lateral do veículo, no meu espelho retrovisor. Com o impacto, foi lançado ao centro da faixa da direita.

Daquele momento em diante, minhas lembranças são turvas. Impossível descrever o desespero que senti. Parei o carro e desci o mais rápido que pude. Telefonei para o SIATE e abri o porta-malas para pegar o triângulo. 

Enquanto isso, surgiram pessoas não sei de onde. Junto com elas, eu tentava sinalizar para que os carros que vinham pela BR fossem para a pista da esquerda. Não sei dizer quanto tempo passou, até que um veículo quase me atropelou e passou por cima do homem estendido na pista. 

Interessante pensar nos insondáveis mistérios da mente humana. A cena do carro passando por cima daquele pobre homem, destruindo seu corpo e seguindo, como se nada tivesse acontecido, é uma imagem que constantemente assombra minha memória e a de meu colega Samuel. Mesmo assim, nenhum de nós soube descrever o veículo quando o primeiro policial chegou ao local, 20 minutos depois. Em minha lembrança, vejo um carro branco. O Samuel acredita que era um Astra preto. Na verdade, nenhum de nós sequer tem certeza de que foi um único veículo que passou por cima do homem.

Na hora eu estava tão assustada com a situação que nem parei pra pensar que, ao atropelar uma pessoa, o motorista daquele carro somente se envolveu num acidente. Mas, ao ir embora do local, cometeu crime de omissão de socorro. Mesmo com minha formação em Direito, eu não estava em condições de pensar em implicações legais. Meu desespero foi perceber que não havia mais nada a fazer pela vítima.

Um senhor colocou o triângulo no meio da pista da direita, cerca de cem metros antes do local do acidente. Um caminhão passou por cima do triângulo e, por pouco, não passa por cima da vítima e de mim,  que berrava e acenava na beira da estrada. Naquele momento não atentei para os riscos que eu corria, de roupa preta, num ponto totalmente escuro da estrada. Uma senhora parou o carro perto do lugar e me tirou da pista, ofereceu auxílio e ficou ali comigo até o Dé chegar, de bicicleta.

Antes de a polícia aparecer, curiosos se aproximaram e vários reconheceram o indivíduo. Alguns disseram que estavam num bar com ele até poucos minutos. Contaram que ele estava lá fazia horas e queria continuar bebendo, mas os companheiros mandaram que ele fosse para casa, pois estava muito embriagado. Vários relataram que a namorada dele havia morrido atropelada no mesmo local, cerca de 20 dias antes, e que, desde a morte dela, ele dizia que queria morrer. Chegaram a sugerir que ele talvez tenha se atirado em direção ao meu carro de  forma proposital.

Num dado momento, eu disse, aos prantos: "Samuel, você viu, né?" e ele me respondeu: "eu vi tudo, você não teve culpa nenhuma. Não tinha nada que você pudesse fazer, o homem se atirou no carro!". O policial, ao examinar a cena, disse que o pequeno estrago feito no meu carro não condizia com as lesões da vítima. Talvez ele estivesse vivo quando o segundo carro o atropelou. Diversas pessoas, ao verem o quanto eu estava abalada, aproximaram-se dizendo que eu não precisava me preocupar. "Todo mundo aqui sabe que ele era um bêbado, não foi sua culpa".

E por acaso me importa se ele era ou estava bêbado? Se a culpa foi dele, ou do outro motorista, ou do destino? O que se perdeu foi uma vida humana, tão volátil como qualquer outra que se esvai em instantes. O que me aflige é a constatação dramática de nossa fragilidade e impotência.

Racionalizando ao longo dos últimos dias, consegui afastar da minha memória a sentença "eu matei um homem". Analisando por todos os pontos de vista possíveis, concluí que, de fato, não havia nada que eu pudesse ter feito para evitar a tragédia. Se ele se atirou sobre meu carro intencionalmente, foi suicídio. Se correu na direção do veículo sem ter noção do que estava fazendo, atordoado pela embriaguez, foi um acidente fatal, provocado por culpa exclusiva da vítima. Se ele ainda estava vivo ao cair no asfalto e morreu ao ser atropelado pelo segundo veículo, eu fiz tudo que pude para evitar que isso acontecesse. Parei o carro, chamei socorro, sinalizei o local. Não havia mais o que fazer sem colocar em risco a minha própria vida.

Restam somente suposições. Se eu não tivesse ido para a aula, se não tivesse saído mais cedo, se tivesse parado num posto para abastecer, se o semáforo que peguei fechado estivesse aberto, se ele não tivesse bebido, se sua mulher não tivesse morrido, se seus colegas de copo e de cruz o tivessem acompanhado até sua casa... "SE" é um universo infinito de possibilidades que não podemos controlar, somente aceitar aquela que, dentre todas as demais, foi justamente a que aconteceu.

Se eu fosse só razão, é possível que estivesse mais tranquila. É o coração, no entanto, que ainda me faz chorar.

Não me resta alternativa, senão confiar nos desígnios divinos e rezar. Por aquele homem, vítima de um destino infeliz, e por seus entes queridos, para quem a dor da perda é infinitamente maior que o trauma que eu sofri. É por isso que peço, todos os dias, que encontrem paz, conforto e amparo.

21 comentários:

  1. Oki.
    Frequentemente leio seus textos, nunca deixei sequer um comentário, mas hoje não há como não escrever nada.
    Imagino o quão difícil esteja sendo, mas vc encontrará alento e consolo, afinal de contas, não havia nada que pudesse fazer para evitar o acidente.
    Espero que supere e fique bem logo, se precisar saiba que poderá contar comigo há qualquer momento.
    Bjo
    Vanessa

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  2. Muito obrigada, Vanessa, de coração. :)
    Bjo

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  3. Que triste!
    Mas acredito que tudo tem um motivo para acontecer. E obviamente você não teve culpa e muito menos poderia ter evitado o acidente.
    São coisas da vida. Reze bastante por ele, que tudo dará certo.
    Espero que você fique bem logo!

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  4. Que história emocionante! Fiquei o tempo todo desejando chegar ao fical e descobrir que você estava nos pregando uma peça. Mas como disse o Dostoievski, nada é mais fantástico que a própria realidade(claro que eu estou desconsiderando fantástico como algo bom). Uma fatalidade.

    Minha avó materna sempre me disse que é o "se" (e o "quase") que atrapalham nossa vida. Nesse caso 2 vidas: o do que a perdeu e a sua que agora carrega uma "culpa" sabida inocência.

    Boa sorte, amiga!

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  5. Mariana, com certeza as coisas não acontecem por acaso, e acredito que a gente só recebe o peso que pode carregar...

    Pois é, Carla, bem que eu queria que fosse só uma obra de ficção... Mas não é algo que eu seria capaz de me imaginar vivenciando. É justamente o tipo de coisa que nunca se imagina que possa acontecer com a gente, né?

    Obrigada às duas pelas palavras de apoio!

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  6. Fiquei muito chocada quando li o texto... desejo muita força a você, pra superar tudo isso. Também acredito que tudo que acontece em nossas vidas tem um propósito, e cabe a nós termos sabedoria para perceber isso.
    Quanto a mim, que passo quase diariamente na BR 116 no caminho de ida e volta do trabalho, às vezes muito distraída e imprudente, vou alterar meus caminhos...
    beijos

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  7. Grata pela força, Bel e Rafaela.

    Infelizmente eu não tenho como evitar a BR, mas hoje ando mais devagar e atenta do que nunca. Não dá pra se distrair. Se um carro a 80 km/h (velocidade mais baixa do que a da maioria dos veículos na estrada) atinge uma pessoa, a chance de ela sobreviver é mínima. Desenvolvi um pavor de reações inesperadas pedestres andando à margem da estrada.
    Beijos

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  8. Deve ter sido uma sensação horrível mesmo. Certa vez eu ia atropelando um cachorro e fiquei desesperada. Imagina só essa situação com uma pessoa...

    Mas vai ficar tudo bem. Interessante que, como a Carla, eu também li o texto ansiosa esperando qual peça você nos pregaria no final. Infelizmente não foi o caso. =/

    Bjs

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  9. Guria,
    Eu ando muito pela 116 porque nado no Santa Mõnica e meu namorado mora em Quatro Barras e já vi muitos acidentes terríveis nessa rodovia.
    Eu mesma já escapei de vários acidentes em que poderia ter sido a vítima ou a culpada.
    Triste o que aconteceu com você, mas sei que você vai conseguir superar.
    O mais impressionante é esse motorista que ignorou a sinalização e simplesmente atropelou uma pessoa já caída e foi embora como se nada tivesse acontecido.
    Mas eu acredito na justiça divina. Ele, mais cedo ou mais tarde, vai receber sua punição.

    Fique bem.

    beijo

    Lili

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  10. É a primeira vez que eu entro no seu blog. Tinha um comentário no blog "ratazana também ama" que eu acompanho e decidi entrar e ver como você escrevia. Juro que essa história me arrepiou inteira, e mais do que isso, me assustou demais porque poderia acontecer com qualquer um.
    Força e superação. Vai ficar tudo bem.
    Um beijo, Bela.

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  11. Senti uma tristeza profunda com o que houve contigo. Meu tio foi uma vítima fatal e em uma circunstância muita semelhante ao seu relato, alcoolizado ele foi atropelado. Porém assim como o condutor do 2º veículo o motorista o abandonou e fugiu.
    Você foi correta, fez o que podia, e até se arriscou na tentativa de socorrê-lo, e mesmo que não tenha sido possível deu a ele a oportunidade digna de ser retirado do local.
    Já te acompanho a tanto tempo que me sinto até uma amiga distante, então digo a vc o que diria a uma pessoa íntima. Foi uma enorme fatalidade e infelizmente você foi tão vítima quanto ele.

    Sinto muitíssimo. Fique bem, fique em paz...
    Bjo querida
    Gisele

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  12. Demorei para entrar no teu blog, por várias razões, o momento tumultuado no trabalho, a mudança de casa, mas creio que também havia algo mais, sabia que vc escreveria sobre este fato tão lamentável. Não tem como ler e não chorar de tristeza. Sei que vc vai superar porque conheço minha cria! Sei que este momento em tua vida é especial em termos de realizações e isto tudo vai te auxiliar a minimizar o fato. Tua estrutura emocional também é um fator importante para a superação. Sinto ainda por não ter corrido naquele momento e ido ao teu encontro, sinto por não ter sequer imaginado que eu teria uma reação tão inusitada, que isto iria me abalar tanto, sofri muito por você, por te conhecer, por saber da tua integridade espiritual, sofri também por aquele infeliz, por ter desperdiçado uma vida de uma maneira
    tão horrível.
    Não nos resta muito a fazer, além de elevar nossos pensamentos em oração, e pedir que o Grande Mestre acolha esta alma, e lhe dê alento e paz.
    O "se" é um leque que se estende ao infinito. Tudo tem uma razão, e no momento vc precisa cuidar de sua vida e seguir em frente.
    Enfim, minha linda guerreira, estou aqui para reforçar o que vc já sabe, te amo e estou sempre do teu lado para o que vc precisar.
    bjo da mami

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  13. Minha querida priminha Oksana...
    Estou pasma, praticamente estática.
    Conforme fui lendo o texto, em minha mente só conseguia ver você pequenina, como no tempo em que, algumas vezes, eu ficava no apartamento da sua mãe pra te fazer companhia, lembra? Só não consigo imaginar tamanha tristeza, pois você sempre foi tão forte, determinada e segura. Foram poucas as vezes em que te vi chorar. Se eu pudesse, hoje, te pegaria no colo como antes, para poder te confortar e dizer que "isso passa"... então, ver a sua carinha sorrindo e confiante nas minhas palavras...
    Oki, você não teve culpa de nada, está claro! Sei que o emocional sempre se sobrepõe ao racional, incomodando tanto ao ponto de te fazer sentir alguma culpa, buscando suposições para que isso não acontecesse, mas aconteceu e... não foi sua culpa e pronto!
    Agora, posso te garantir, para amenizar seu coração o único amigo verdadeiro neste momento é o tempo seguido de orações e amparo amigo.
    O tempo está aí e não há como negá-lo, as orações e os amigos estão à sua disposição para te acompanhar sempre. Conte comigo... o meu colinho pode estar pequeno, mas o meu ombro e o meu abraço estão cada vez maiores.
    Te adoro.
    Grande beijo
    da LU

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  14. Natasha, Lili, grata pelas palavras de apoio! Isabela, pena você não ter conhecido meu blog num momento mais inspirado! Grata também pelas suas palavras!
    Gisa, realmente a gente acompanha os blogs de outras pessoas, muitas vezes em silêncio, sempre torcendo pela felicidade delas e se comovendo com os momentos difíceis. Eu concordo que é uma forma de amizade! Grata pelo apoio também!
    Mãe e Lu, não tenho dúvida de que o amor da família é uma força extra nas dificuldades. Sorte minha pela família linda que tenho!
    Amo vocês!
    Beijo pra todo mundo!

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  15. Olá Oki,

    Paz.

    Tenho um grande amigo que diz que todo cuidado do mundo reunido ainda é pouco. Porque existem coisas que não são do destino, são somente acidentes. Muito embora a palavra "somente" dificilmente se aplica quando uma vida cessa de existir materialmente na terra.

    Também sabemos que o Criador tudo pode e inevitavelmente surge o pensamento do motivo d'Ele não intervir e parar o homem, seu carro ou algo assim. Afinal, Ele tudo pode.

    Mas ganhamos o poder de decidirmos o que, porque, quando e como, poder este conhecido como Livre Arbítrio. Foi fazendo uso deste poder de livre arbitrar que o senhor que se fez vítima decidiu alcoolizar-se, que os "amigos" de copo o mandaram para casa e não o acompanharam, que o dono do bar resolveu vender cachaça ao invés de suco. E com a mente turva, sem a condição de usar o raciocínio claro, o homem resolver atravessar a estrada.

    Deus não culpa ninguém e neste caso, nem há motivo para você se des-culpar. Aconteceu com seu carro, mas poderia ter sido com o carro do João, do José ou da Ana.

    Também não nos cabe dizê-lo suicida, coisa que caberia somente a Deus, mas Ele com toda Sua bondade, jamais o fará.

    Cabe-nos tão-somente orar pelo senhor que deixou a matéria de modo tão violento. E cabe a nós, amigos seus, orar por você para que encontre sempre e sempre a Paz que merece.

    Que a Luz de Deus ilumine seu coração e o tranquilize.

    Carlos

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  16. Oki,

    Deus está sempre muito próximo de nós. Mesmo com algumas coisas que parecem não ser boas, Ele está sempre conosco.

    Ele também estava com você na hora do acidente, não deixando que nada acontecesse com você.

    Deus também não abandonorá o senhor que perdeu a vida. Suas orações com toda certeza são um bálsamo onde quer que esteja.

    Todos que ouvimos sua história, também procuramos ter bons pensamentos para ele, para que ele possa receber uma luz também.

    Que seu coração fique bem.

    Su.

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  17. olha...eu comecei a ler a história e toda hora eu descia todo o texto procurando a autoria, pq parece aquelas histórias q não acontecem com quem é próximo da gente...

    difícil até comentar e tentar aliviar alguma coisa (pq é isso q a gente tenta quando comenta, né?)... mas... fica aqui meu desejo q as coisas já estejam bem e q vc tb esteja em paz.

    beijo, irmazinha.

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  18. Oki, "se" eu pudesse apagava essa história do seu destino, trocava o texto do seu blog e daria vida nova para o homem que hoje ganha minhas orações...também rezo por você, minha amiga, para que Deus te conforte e mantenha suas estruturas.
    Entendo que, se ele estava se sentindo sozinho pela falta da namorada, Deus acabou por acertar ao colocar uma pessoa tão especial como você nos últimos minutos da vida deste homem.
    Que Deus o acompanhe onde ele esteja e que siga sempre com você...beijos

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  19. Oki querida... só soube do acontecido por aqui...

    As coisas acontecem na vida da gente para trazer lições e, principalmente, experiência... a experiência nos amadurece e prepara...

    Força guria!!! Cabeça erguida, fé em Deus e inspira-ação. Conte comigo!

    Beijão,

    Thayna

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