terça-feira, 13 de julho de 2010

A vida é um espetáculo imperdível

Eu tinha cinco anos. Minha mãe, 29. Andávamos de mãos dadas no condomínio em que vivíamos, quando nos deparamos com duas irmãzinhas lindas, de cachos dourados e olhos claros, brincando no parquinho. Muito simpáticas, acolheram-me de imediato e ali teve início nossa amizade. A Lucie tinha quatro anos e a Julie tinha três.

A mãe delas, a Narli, era uma moça linda de 25 anos de idade. Assim como minha mãe, enfrentava o desafio de cuidar de seus rebentos com pouca ou nenhuma ajuda do pai. Claro que suprir as necessidades de duas é mais difícil do que de uma. Por isso a Narli trabalhava demais. Muitas vezes, as meninas ficavam lá em casa, enquanto a Narli fazia horas extras. Para nós, claro, era uma festa.

Minha mãe e a Narli logo se tornaram melhores amigas, irmãs, inseparáveis. Trabalharam na mesma empresa, deram força uma à outra, dividiram confidências, enxugaram lágrimas e deram muitas risadas juntas. Anos depois, a Narli teve mais uma menina, a Dani, e escolheu minha mãe para ser sua madrinha.

Com o passar do tempo, muita coisa aconteceu. Meu irmão nasceu, minha mãe casou e se separou, a Narli mudou de cidade mais de uma vez, a Julie teve uma menina, depois um menino, e mais uma menina. A Lucie teve uma menina também. E a Dani, há cerca de uma semana, deu à luz um garotinho lindo. Eu e o Dé compramos nossa casa e fomos morar juntos.

Cada uma das pessoas envolvidas nessa história vivenciou seus próprios dramas particulares. Todos nós sofremos revezes da vida que, em diversas situações, afastaram nossos caminhos.

Mas a amizade entre minha mãe e a Narli é daquelas que sobrevive ao tempo, à distância. E elas sempre se mantiveram próximas, de alguma maneira. Há uns dois meses, a Narli mandou um e-mail à minha mãe falando exatamente disso: do quanto era importante saber que, mesmo quando passavam algum tempo sem ter contato, a amizade delas continuava existindo, firme e forte.

Há cerca de um ano, a Narli se encontrava numa situação do tipo que costumamos classificar como “o fundo do poço”. Numa depressão profunda, desejando morrer, sem forças para dar um passo adiante. Minha mãe se fez presente e almejou ardentemente rever na amiga a figura batalhadora, alegre e cheia de vida de tempos atrás.

E ela ressurgiu. Redescobriu a vontade de viver. Reconciliou-se com as filhas amadas, fortaleceu os laços com os netos tão queridos. Atrevo-me a dizer que rejuvenesceu. Superou os medos, os traumas, os dramas. Passou a enxergar em cada instante uma oportunidade de ser e fazer feliz. Em suas palavras, refletia um amor imensurável pela família, por Deus e pela vida com que Ele a presenteou.

Impossível não fazer referência à famosa ave mitológica que renasce das cinzas, como lembrou sua primogênita Lucie, hoje, ao lado do caixão da mãe. “Minha mãe é como a Fênix”. Aos 48 anos, nossa querida Narli deixou nosso plano material, levada por uma fatalidade tão difícil de entender quanto de aceitar.

Em suas últimas horas de vida, buscou acalmar seus entes queridos, assegurando-lhes que ficaria bem, pois ainda tinha muito que viver. Declarou seu amor às filhas e aos netos diversas vezes. E repetiu uma frase que gostava de dizer: “a vida é um espetáculo imperdível”. Ela dizia que precisamos ter coragem de sair da plateia e subir ao palco.

Só quem sobe ao palco pode um dia sair de cena sob aplausos. Narli encerra o espetáculo no auge da peça, em seu momento mais glorioso. Assim, sua história não será recordada como tragédia, mas como um exemplo brilhante de superação. Sua lembrança, que hoje nos conduz às lágrimas, certamente será em breve motivo de sorrisos saudosos.

A maior homenagem que lhe podemos prestar é seguir a lição que ela mesma aprendeu com sofrimento, mas ensinou com amor: é preciso apaixonar-se pela vida. Viver sem medo, sorrir sem motivo, amar sem limites.

Mais uma vez, empresto as palavras da Lucie: “as cortinas se fecham aqui, para se abrir em outro lugar”. Siga em paz, querida. Foi uma grande alegria fazer parte de sua história, durante 23 anos da minha vida. Um dia a gente se encontra, em outros palcos por aí.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Força do hábito

A virtude humana é fraca, por isso o preço de resistir a tentações é a vigília constante. A vontade humana é igualmente débil - vide resoluções de ano novo abandonadas antes do carnaval. A constituição física do ser humano também é frágil: mesmo o corpo do mais rijo dos atletas perece em algumas décadas. Entretanto, uma força extraordinária reside em algo tipicamente humano: o hábito. 

Muitos hábitos nos acompanham desde a infância. Aprendemos logo cedo a erguer a voz quando queremos impor nossa vontade, quando disputamos pela primeira vez o balde de areia com um amiguinho no parque. Aprendemos a colocar a culpa no outro, quando perguntaram quem quebrou o vaso e dissemos que foi o gato. Por outro lado, se tomamos banho diariamente, escovamos os dentes após as refeições, dizemos "por favor", "obrigado" e "com licença", respeitamos os mais velhos, é porque nossos pais, avós e professores se dedicaram à árdua missão de nos ensinar boas maneiras, incutir-nos noções de higiene e educação.

Daí já se nota que a principal diferença entre os bons e os maus hábitos não é a consequência deles, mas sim o modo como nascem. Os maus, por mero descuido e desatenção. Os bons, com muito empenho e constância.

Conforme amadurecemos, a rotina do trabalho, dos estudos, da casa e dos relacionamentos agrega uma série de hábitos à nossa personalidade. E com a prática, os hábitos adquirem uma força indiscutível. Por força do hábito, você acorda cedo sem despertador no domingo, mesmo que seja só para se virar e babar do outro lado do travesseiro. Por força do hábito, você disca o zero antes de fazer uma ligação - do telefone de casa.

Quanto mais o tempo passa, mais fortes os hábitos ficam. Ganham o status de manias. Os muito ruins, de vícios. E nós, seres humanos, com nossas fraquezas de corpo, virtude e vontade, temos cada vez menos condições de lutar contra eles. Corrigir um mau hábito na infância é fácil, mas tente convencer um idoso a fazer algo diferente da forma que tem feito há décadas (como minha ex-vizinha, D. Aurora, que todas as manhãs esvaziava seu velho penico nas plantas do jardim).

Diante disso, adiar transformações necessárias para um futuro de debilidade física e, quiçá, mental, é perder a batalha de antemão. Não adianta ficar esperando que sejamos um dia mais fortes do que somos hoje. Hábitos fortalecidos ao longo de uma vida inteira inevitavelmente se tornarão invencíveis.  A solução ideal seria não criar o monstro. Mas ela esbarra, é claro, nas nossas fraquezas. E então surge uma ideia brilhante: se devo ceder à força de meus hábitos, o melhor a fazer é empenhar meus esforços na implementação de bons hábitos, para que sejam estes os incorrigíveis no futuro.

Quando se fala em bons hábitos, todo mundo pensa em exercícios físicos diários, alimentação saudável, dormir bem. Mas e se formos além? E se ousarmos pensar em hábitos que não fazem bem somente à saúde, mas nos fazem felizes?

Todas as manhãs, logo depois que levantamos, eu e meu marido nos abraçamos forte e desejamos bom dia um ao outro. Nosso abraço matinal é imprescindível para começar bem o dia. Talvez muito mais importante que um café da manhã bem servido.

Queixar-se do trabalho, reclamar do governo, encaminhar e-mails inúteis, fazer fofoca, criticar atitudes alheias, jogar tempo fora. Hábitos ruins que fazem parte da vida da maior parte dos seres humanos, e não foi preciso esforço algum para que eles se instalassem.

Por que então não se dedicar a implementar o hábito de ser feliz? Meditar de vez em quando; fazer uma oração antes de dormir, agradecendo por mais um dia de vida; dizer "eu te amo" com mais frequência; elogiar alguém; desejar bom dia de verdade, não por obrigação; prestar atenção à paisagem enquanto caminha, em vez de olhar para o chão e pensar na agenda lotada. Desligar a TV e ler um livro; preparar uma receita nova todo final de semana; visitar os amigos; preocupar-se menos e rir mais; separar o lixo para reciclar; experimentar uma coisa diferente toda semana ou, se possível, todo dia.

Sempre consideramos correto nos dedicar a tudo que possa nos proporcionar mais sucesso, estabilidade financeira, experiência profissional, tudo que nos dá aquela imagem de pessoas responsáveis, esforçadas, trabalhadoras e sérias. Empreender esforços na simples busca da felicidade, da alegria, do bem-estar parece tolice, coisa de quem está com a vida ganha ou tem tempo a perder.

Pois bem, ao invés de nutrir neuroses, úlceras e outros problemas de gente sérias, eu quero dar cada vez mais força a hábitos deliciosos como os abraços matinais do meu marido. E quando eu já for idosa, espero que digam de mim: "Aquela velha ali? Tem uma mania incorrigível de ser feliz."