Jamais me esquecerei do fatídico 15 de abril de 2010, dia em que atropelei um homem e o vi morrer diante de meus olhos.
A quinta-feira começou como qualquer outra. Saí de casa um pouco atrasada. O Dé me deixou no escritório e ficou com o carro. Mais tarde, deixou-o no estacionamento próximo ao meu trabalho, para que eu pudesse ir à faculdade.
A quinta-feira começou como qualquer outra. Saí de casa um pouco atrasada. O Dé me deixou no escritório e ficou com o carro. Mais tarde, deixou-o no estacionamento próximo ao meu trabalho, para que eu pudesse ir à faculdade.
A aula de Comunicação Empresarial terminou cedo, por volta das 22h20. Saí da faculdade com meu colega de turma, Samuel, para quem dou carona todas as noites, já que ele mora perto da minha casa.
Seguia pela BR-116, sentido PR-SP. Pelo retrovisor, percebi um veículo se aproximando rapidamente, então fui para a pista da direita e ali permaneci, reduzindo a velocidade, uma vez que a saída para o meu bairro já estava próxima.
Num trecho muito escuro, sem nenhum poste de iluminação, visualizei já bem perto um vulto cruzando a estrada, da esquerda para a direita, muito lentamente. Para ser mais exata, ele estava praticamente parado. Não dava pra saber se ele seguiria adiante, em direção à faixa pela qual eu passaria em instantes, ou se permaneceria onde estava, esperando que meu veículo passasse.
Tudo aconteceu em questão de segundos. Embora eu já estivesse diminuindo a velocidade, era impossível parar totalmente o carro numa distância tão curta. Conforme me aproximava, vi que a pessoa continuava avançando lentamente. Afundei o pé no freio o máximo que pude, joguei o carro para a direita, para fora da pista, e buzinei, na esperança de que o homem saísse do transe em que parecia se encontrar.
Infelizmente, a única coisa que eu não podia prever foi o que aconteceu: no exato momento em que eu passaria ao lado do homem, sem causar-lhe qualquer dano, ele correu em direção ao carro, atingindo a lateral do veículo, no meu espelho retrovisor. Com o impacto, foi lançado ao centro da faixa da direita.
Daquele momento em diante, minhas lembranças são turvas. Impossível descrever o desespero que senti. Parei o carro e desci o mais rápido que pude. Telefonei para o SIATE e abri o porta-malas para pegar o triângulo.
Enquanto isso, surgiram pessoas não sei de onde. Junto com elas, eu tentava sinalizar para que os carros que vinham pela BR fossem para a pista da esquerda. Não sei dizer quanto tempo passou, até que um veículo quase me atropelou e passou por cima do homem estendido na pista.
Interessante pensar nos insondáveis mistérios da mente humana. A cena do carro passando por cima daquele pobre homem, destruindo seu corpo e seguindo, como se nada tivesse acontecido, é uma imagem que constantemente assombra minha memória e a de meu colega Samuel. Mesmo assim, nenhum de nós soube descrever o veículo quando o primeiro policial chegou ao local, 20 minutos depois. Em minha lembrança, vejo um carro branco. O Samuel acredita que era um Astra preto. Na verdade, nenhum de nós sequer tem certeza de que foi um único veículo que passou por cima do homem.
Na hora eu estava tão assustada com a situação que nem parei pra pensar que, ao atropelar uma pessoa, o motorista daquele carro somente se envolveu num acidente. Mas, ao ir embora do local, cometeu crime de omissão de socorro. Mesmo com minha formação em Direito, eu não estava em condições de pensar em implicações legais. Meu desespero foi perceber que não havia mais nada a fazer pela vítima.
Um senhor colocou o triângulo no meio da pista da direita, cerca de cem metros antes do local do acidente. Um caminhão passou por cima do triângulo e, por pouco, não passa por cima da vítima e de mim, que berrava e acenava na beira da estrada. Naquele momento não atentei para os riscos que eu corria, de roupa preta, num ponto totalmente escuro da estrada. Uma senhora parou o carro perto do lugar e me tirou da pista, ofereceu auxílio e ficou ali comigo até o Dé chegar, de bicicleta.
Antes de a polícia aparecer, curiosos se aproximaram e vários reconheceram o indivíduo. Alguns disseram que estavam num bar com ele até poucos minutos. Contaram que ele estava lá fazia horas e queria continuar bebendo, mas os companheiros mandaram que ele fosse para casa, pois estava muito embriagado. Vários relataram que a namorada dele havia morrido atropelada no mesmo local, cerca de 20 dias antes, e que, desde a morte dela, ele dizia que queria morrer. Chegaram a sugerir que ele talvez tenha se atirado em direção ao meu carro de forma proposital.
Num dado momento, eu disse, aos prantos: "Samuel, você viu, né?" e ele me respondeu: "eu vi tudo, você não teve culpa nenhuma. Não tinha nada que você pudesse fazer, o homem se atirou no carro!". O policial, ao examinar a cena, disse que o pequeno estrago feito no meu carro não condizia com as lesões da vítima. Talvez ele estivesse vivo quando o segundo carro o atropelou. Diversas pessoas, ao verem o quanto eu estava abalada, aproximaram-se dizendo que eu não precisava me preocupar. "Todo mundo aqui sabe que ele era um bêbado, não foi sua culpa".
E por acaso me importa se ele era ou estava bêbado? Se a culpa foi dele, ou do outro motorista, ou do destino? O que se perdeu foi uma vida humana, tão volátil como qualquer outra que se esvai em instantes. O que me aflige é a constatação dramática de nossa fragilidade e impotência.
Racionalizando ao longo dos últimos dias, consegui afastar da minha memória a sentença "eu matei um homem". Analisando por todos os pontos de vista possíveis, concluí que, de fato, não havia nada que eu pudesse ter feito para evitar a tragédia. Se ele se atirou sobre meu carro intencionalmente, foi suicídio. Se correu na direção do veículo sem ter noção do que estava fazendo, atordoado pela embriaguez, foi um acidente fatal, provocado por culpa exclusiva da vítima. Se ele ainda estava vivo ao cair no asfalto e morreu ao ser atropelado pelo segundo veículo, eu fiz tudo que pude para evitar que isso acontecesse. Parei o carro, chamei socorro, sinalizei o local. Não havia mais o que fazer sem colocar em risco a minha própria vida.
Restam somente suposições. Se eu não tivesse ido para a aula, se não tivesse saído mais cedo, se tivesse parado num posto para abastecer, se o semáforo que peguei fechado estivesse aberto, se ele não tivesse bebido, se sua mulher não tivesse morrido, se seus colegas de copo e de cruz o tivessem acompanhado até sua casa... "SE" é um universo infinito de possibilidades que não podemos controlar, somente aceitar aquela que, dentre todas as demais, foi justamente a que aconteceu.
Se eu fosse só razão, é possível que estivesse mais tranquila. É o coração, no entanto, que ainda me faz chorar.
Não me resta alternativa, senão confiar nos desígnios divinos e rezar. Por aquele homem, vítima de um destino infeliz, e por seus entes queridos, para quem a dor da perda é infinitamente maior que o trauma que eu sofri. É por isso que peço, todos os dias, que encontrem paz, conforto e amparo.