Eu tinha cinco anos. Minha mãe, 29. Andávamos de mãos dadas no condomínio em que vivíamos, quando nos deparamos com duas irmãzinhas lindas, de cachos dourados e olhos claros, brincando no parquinho. Muito simpáticas, acolheram-me de imediato e ali teve início nossa amizade. A Lucie tinha quatro anos e a Julie tinha três.
A mãe delas, a Narli, era uma moça linda de 25 anos de idade. Assim como minha mãe, enfrentava o desafio de cuidar de seus rebentos com pouca ou nenhuma ajuda do pai. Claro que suprir as necessidades de duas é mais difícil do que de uma. Por isso a Narli trabalhava demais. Muitas vezes, as meninas ficavam lá em casa, enquanto a Narli fazia horas extras. Para nós, claro, era uma festa.
Minha mãe e a Narli logo se tornaram melhores amigas, irmãs, inseparáveis. Trabalharam na mesma empresa, deram força uma à outra, dividiram confidências, enxugaram lágrimas e deram muitas risadas juntas. Anos depois, a Narli teve mais uma menina, a Dani, e escolheu minha mãe para ser sua madrinha.
Com o passar do tempo, muita coisa aconteceu. Meu irmão nasceu, minha mãe casou e se separou, a Narli mudou de cidade mais de uma vez, a Julie teve uma menina, depois um menino, e mais uma menina. A Lucie teve uma menina também. E a Dani, há cerca de uma semana, deu à luz um garotinho lindo. Eu e o Dé compramos nossa casa e fomos morar juntos.
Cada uma das pessoas envolvidas nessa história vivenciou seus próprios dramas particulares. Todos nós sofremos revezes da vida que, em diversas situações, afastaram nossos caminhos.
Mas a amizade entre minha mãe e a Narli é daquelas que sobrevive ao tempo, à distância. E elas sempre se mantiveram próximas, de alguma maneira. Há uns dois meses, a Narli mandou um e-mail à minha mãe falando exatamente disso: do quanto era importante saber que, mesmo quando passavam algum tempo sem ter contato, a amizade delas continuava existindo, firme e forte.
Há cerca de um ano, a Narli se encontrava numa situação do tipo que costumamos classificar como “o fundo do poço”. Numa depressão profunda, desejando morrer, sem forças para dar um passo adiante. Minha mãe se fez presente e almejou ardentemente rever na amiga a figura batalhadora, alegre e cheia de vida de tempos atrás.
E ela ressurgiu. Redescobriu a vontade de viver. Reconciliou-se com as filhas amadas, fortaleceu os laços com os netos tão queridos. Atrevo-me a dizer que rejuvenesceu. Superou os medos, os traumas, os dramas. Passou a enxergar em cada instante uma oportunidade de ser e fazer feliz. Em suas palavras, refletia um amor imensurável pela família, por Deus e pela vida com que Ele a presenteou.
Impossível não fazer referência à famosa ave mitológica que renasce das cinzas, como lembrou sua primogênita Lucie, hoje, ao lado do caixão da mãe. “Minha mãe é como a Fênix”. Aos 48 anos, nossa querida Narli deixou nosso plano material, levada por uma fatalidade tão difícil de entender quanto de aceitar.
Em suas últimas horas de vida, buscou acalmar seus entes queridos, assegurando-lhes que ficaria bem, pois ainda tinha muito que viver. Declarou seu amor às filhas e aos netos diversas vezes. E repetiu uma frase que gostava de dizer: “a vida é um espetáculo imperdível”. Ela dizia que precisamos ter coragem de sair da plateia e subir ao palco.
Só quem sobe ao palco pode um dia sair de cena sob aplausos. Narli encerra o espetáculo no auge da peça, em seu momento mais glorioso. Assim, sua história não será recordada como tragédia, mas como um exemplo brilhante de superação. Sua lembrança, que hoje nos conduz às lágrimas, certamente será em breve motivo de sorrisos saudosos.
A maior homenagem que lhe podemos prestar é seguir a lição que ela mesma aprendeu com sofrimento, mas ensinou com amor: é preciso apaixonar-se pela vida. Viver sem medo, sorrir sem motivo, amar sem limites.
Mais uma vez, empresto as palavras da Lucie: “as cortinas se fecham aqui, para se abrir em outro lugar”. Siga em paz, querida. Foi uma grande alegria fazer parte de sua história, durante 23 anos da minha vida. Um dia a gente se encontra, em outros palcos por aí.